
Certamente, o grande “Arquiteto do Universo” e a natureza foram muito caprichosos na construção e lapidação de um dos cenários mais magníficos e belos de todo o planeta, onde se descortina a cidade do Rio de Janeiro. Infelizmente, como uma mancha escura que se alastra numa magistral obra de arte, num contraponto degradante, surgiram e cresceram as favelas cariocas. Focos de bolsões de pobreza e redutos do banditismo, elas também são responsáveis por um injusto estigma de uma suposta violência urbana generalizada, que muito prejudica a imagem da “Cidade Maravilhosa”.
O termo “favela” remonta à Guerra de Canudos, cidadela construída junto a alguns morros, entre eles o “Morro da Favela”, assim chamado por causa de um arbusto chamado favela que encobria a região. Os combatentes, ao regressarem do conflito, sem receber o soldo, instalaram-se em construções provisórias no “Morro da Providência”. O local ou, então, a ser designado por “Morro da Favela”. No término do período escravagista, sem posse de terras e sem condições de trabalho, grande contingente de ex-escravos também assomou os morros cariocas. Por outro lado, durante grandes empreendimentos urbanos, a exemplo da construção das linhas de bondes, os trabalhadores acomodavam-se nos canteiros de obras. No final, quando não encontravam emprego em novas obras, tinham de construir seus barracos junto aos locais em que pudessem conseguir trabalho
A gradativa migração da população rural para o espaço urbano, aliada à histórica injustiça social brasileira, assim como da dificuldade do poder público em criar políticas habitacionais adequadas, são fatores que impulsionaram o crescimento dos domicílios nas favelas. Hoje, o Rio de Janeiro já tem mais de 1.000 favelas. As mais novas são apenas pequenos grupamentos de barracos. Segundo o Instituto Pereira os (IPP), de 1999 a 2008, o aumento de áreas faveladas foi de 3,4 milhões de metros quadrados, território equivalente ao do bairro de Ipanema. Mantido esse ritmo, estima-se que a área ocupada pelas favelas no Rio dobrará em 34 anos. Assim, até 2043, a cidade pode perder um quarto de sua área verde. Um gigantesco monstro voraz e avassalador, muito difícil de ser contido ou erradicado.
Mas a grande dimensão do abismo não é apenas social ou ecológica. Quase a metade das favelas cariocas está nas mãos dos bandidos que comandam o narcotráfico. A topografia montanhosa, as dificuldades de o e a alta densidade populacional as transformaram em trincheiras. Ao longo de uma semana, o autor deste artigo, em companhia da consorte, fizeram o primeiro arruar na cidade do Rio de Janeiro, oportunidade em que foram colhidos vários depoimentos, notadamente de taxistas. Todos foram unânimes em ressaltar que a problemática está intimamente ligada à contumaz ineficiência e inércia governamental, conivência política e corrupção policial, além de uma relativa letargia e indiferença do poder central. Ademais, se matar um traficante, vem outro. Se urbanizar uma favela, a quadrilha muda para outra.
Sob alguns ângulos, não deixa de ser interessante um comparativo do cangaço de Lampião com o narcotráfico carioca. Tal como nas favelas, o sertão nordestino era uma terra inóspita, abandonada pelo Estado e dominada pela lei do mais forte. As populações pobres eram as maiores vítimas. Sempre ficavam no meio do tiro cruzado entre as atrocidades dos cangaceiros e as represálias policiais. Além de sua astúcia, Lampião só conseguiu manter um reinado de 19 anos graças ao seu clientelismo corrupto, representado, principalmente, pela figura do coronel sertanejo. O célebre facínora sempre estava à frente da polícia em informação, armamento e munição. Para combater o rei do cangaço em seu território, as volantes da polícia eram compostas por outras “feras da caatinga”, inclusive ex-cangaceiros. Portanto, não adianta recrutar praça do Exército para subir o morro. No entanto, quando há vontade e determinação política, as soluções aparecem. Bastou o presidente Getúlio Vargas bater o martelo, Lampião logo foi acuado e morto.
Não obstante toda a extrema gravidade do problema e da proximidade das favelas com bairros nobres e vias de comunicação, torna-se imperativo que haja distinção entre “violência urbana” e “guerrilha nos morros”. Não se pode generalizar a coisa. Na estada deste autor no Rio, nada foi percebido de anormal ou excepcional no cotidiano carioca. Ao contrário, em alguns quesitos, a notável metrópole é até mais segura do que certas capitais nordestinas. Os traficantes cariocas não são terroristas religiosos fanáticos, nem tampouco guerrilheiros separatistas. O episódio do helicóptero abatido não deixa de ser um fato isolado e fortuito, possivelmente condenado pelos próprios chefões do narcotráfico.
O Rio de Janeiro reúne plena capacidade para promover uma Olimpíada inédita e histórica. Obviamente, que as autoridades e os poderes constituídos têm de empreender uma cruzada conjunta contra o crime organizado. Não está em jogo apenas a reputação e o futuro da “Cidade Maravilhosa”, mas o próprio orgulho nacional e a autoafirmação do povo brasileiro.